19 JAN 2019 - S. João é o único evangelista que narra o primeiro sinal de Jesus, realizado durante aquela celebração em Caná: a pedido de Nossa Senhora, converteu a água em vinho; e também situa nesta povoação da Galileia o segundo milagre de Jesus: a cura do filho de um funcionário real, que estava enfermo em Cafarnaum.

Pegadas da nossa Fé

Transportemo-nos com a imaginação a Caná, para descobrir outra das prerrogativas de Maria. Nossa Senhora pede a seu Filho que remedeie aquela triste situação, de umas bodas em que faltou o vinho. Indica aos criados: fazei tudo o que Ele vos disser (Jo 2, 5.). E Jesus realiza o que a Mãe lhe tinha sugerido, com maternal omnipotência[1].

São João é o único evangelista que narra o primeiro sinal de Jesus, realizado durante aquela celebração em Caná: a pedido de Nossa Senhora, converteu a água em vinho; e também situa neste povoado da Galileia o segundo milagre de Jesus: a cura do filho de um funcionário real, que estava enfermo em Cafarnaum (Cf. Jo 4, 46-54).

O relato de Caná assombra pela simplicidade com que foi redigido, sem, por outro lado, perder riqueza de matizes: “No terceiro dia, houve um casamento em Caná da Galiléia, e a mãe de Jesus estava lá. Também Jesus e seus discípulos foram convidados para o casamento. Faltando o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: ‘Eles não têm vinho!’ Jesus lhe respondeu: ‘Mulher, para que me dizes isso? A minha hora ainda não chegou’. Sua mãe disse aos que estavam servindo: ‘Fazei tudo o que ele vos disser!’ Estavam ali seis talhas de pedra, de quase cem litros cada, destinadas às purificações rituais dos judeus. Jesus disse aos que estavam servindo: ‘Enchei as talhas de água’! E eles as encheram até à borda. Então disse: ‘Agora, tirai e levai ao encarregado da festa’. E eles levaram. O encarregado da festa provou da água mudada em vinho, sem saber de onde viesse, embora os serventes que tiraram a água o soubessem. Então chamou o noivo e disse-lhe: ‘Todo mundo serve primeiro o vinho bom e, quando os convidados já beberam bastante, serve o menos bom. Tu guardaste o vinho bom até agora’. Este início dos sinais, Jesus o realizou em Caná da Galiléia. Manifestou sua glória, e os seus discípulos creram nele” (Jo 2, 1-11).

Os mais antigos relatos cristãos que apresentam Caná da Galileia como meta de peregrinação, situam-na perto de Nazaré: “não longe dali avistaremos Caná, onde foi convertida água em vinho”[2], afirma São Jerônimo numa carta escrita entre os anos 386 e 392. E em um documento posterior, dá a entender que a cidade se encontrava no caminho para o mar de Genesaré: “percorreu-se a bom ritmo Nazaré, local onde cresceu o Senhor; Caná e Cafarnaum, testemunhas dos seus milagres; o lago de Tiberíades, santificado pelas travessias do Senhor, e o deserto em que vários milhares de pessoas se saciaram com uns poucos pães e das sobras dos que comeram se encheram tantos cestos, quantas são as tribos de Israel”[3].

Numerosos testemunhos falam de um santuário edificado pelos cristãos em memória daquele primeiro milagre realizado por Jesus; também afirmam que se conservavam uma ou duas talhas e que existia uma fonte na aldeia. Uma das provas mais remotas pertence ao relato de um peregrino anônimo do séc. VI, que tinha partido de Séforis-Diocesareia: “depois de três milhas de caminho, chegamos a Caná, onde o Senhor esteve presente nas bodas, e sentamo-nos no mesmo lugar, ali eu indignamente escrevi o nome dos meus pais. Ainda aí restam duas talhas, enchi uma de água e derramei vinho dessa; coloquei-a cheia às costas e pousei-a sobre o altar. Depois lavamo-nos na fonte para as bênçãos”[4].

Embora estes testemunhos que chegaram até nós tenham um valor indiscutível, não fornecem dados definitivos para situar Caná, pois poderiam referir-se a dois lugares com esse nome que existem a norte de Nazaré: as ruínas de Khirbet Qana, uma aldeia abandonada há sete séculos; e a cidade de Kefer Kenna, que conta atualmente com dezessete mil habitantes, sendo que um quarto deles é cristão.

Khirbet Qana ocupava o alto de uma colina sobre o vale de Netufa, perto do caminho que ligava Acre com o mar de Genesaré. Encontrava-se a nove quilômetros de Séforis e a catorze de Nazaré. Investigações arqueológicas trouxeram à luz os restos de uma pequena aldeia que sobreviveu até ao séc. XIII ou XIV, onde há uma gruta com vestígios de culto cristão da época bizantina e numerosas cisternas escavadas na rocha para armazenar a água da chuva, uma vez que não havia fontes naquela zona.

Kefer Kenna está a seis quilômetros de Nazaré, no caminho que desce a Tiberíades. A povoação, abastecida por uma nascente, remonta pelo menos ao séc. II antes de Cristo. Parece que no séc. XVI os seus habitantes, que eram na maioria muçulmanos, conservavam a tradição do lugar onde Jesus tinha realizado o milagre. Os peregrinos encontraram aí uma sala subterrânea que tinha acesso a partir das ruínas de uma suposta igreja, cuja construção atribuíram ao imperador Constantino e a sua mãe, Santa Helena. Em 1641, uns franciscanos estabeleceram-se na povoação e começaram os esforços para recuperar aquelas ruínas, cuja posse só foi possível em 1879. Em 1880 foi edificada uma pequena igreja e posteriormente foi-se ampliando, entre os anos 1897 e 1906. Também se construiu, em 1885, a uns cem metros, uma capela em honra de São Bartolomeu – Natanael – que era oriundo de Caná (Cf. Jo 21, 2).

Por ocasião do Jubileu do ano de 2000, foi realizada uma reestruturação do santuário, que se aproveitou para realizar previamente uma investigação arqueológica que completasse outro estudo de 1969. As escavações trouxeram à luz, além da igreja medieval, o que poderia ser uma sinagoga dos séc. III-IV construída sobre os restos de habitações anteriores, que remontam ao séc. I. Esta sinagoga tinha um átrio com pavimento à base de mosaicos, e um vestíbulo com pórtico, com uma grande cisterna no centro, que se conserva no subsolo do templo atual; as colunas e os capitéis do pórtico também se reutilizaram na nave. Na abside setentrional da igreja, encontrou-se uma abside ainda mais antiga que continha uma sepultura do séc. V-VI. O tipo de túmulo parece indicar presença cristã no lugar durante a época bizantina.

Tal como os testemunhos históricos, a arqueologia não nos ofereceu provas definitivas para situar Caná da Galileia: o lugar onde Jesus converteu água em vinho.

Fazei tudo o que ele vos disser

Desde os tempos mais antigos, a riqueza e densidade do relato de São João sobre os primeiros passos do Senhor na sua vida pública alimentaram a reflexão cristã. Através de uma narração de grande riqueza teológica – que será impossível comentar exaustivamente nestas linhas – o milagre de Caná marca o início dos sinais messiânicos, anuncia já a Hora da glorificação de Cristo e manifesta a fé dos apóstolos n’Ele. Por isso, é significativo que São João tenha mencionado a presença e a atuação de Nossa Senhora naquele momento.

Maria Santíssima, Mãe de Deus, passa despercebida, como mais uma, entre as mulheres do seu povo. Aprende dEla a viver com ‘naturalidade’[5]. Maria, Mestra do sacrifício escondido e silencioso! - Vede-a, quase sempre oculta, colaborando com o Filho: sabe e cala[6]. Que humildade, a de minha Mãe Santa Maria! - Não a vereis entre as palmas de Jerusalém, nem - afora as primícias de Caná - à hora dos grandes milagres. Mas não foge ao desprezo do Gólgota; ali está ‘juxta crucem Jesu’, junto à cruz de Jesus, sua Mãe[7].

No meio daquela festa de casamento, Santa Maria repara que falta o vinho e dirige-se a Jesus para acudir à carência dos esposos. “À primeira vista – observa Bento XVI – o milagre de Caná parece não se enquadrar nas demais ações simbólicas de Jesus. Que sentido pode ter que Jesus arranje uma tão grande fartura de vinho — cerca de 520 litros — numa festa privada?[8]. Para o Santo Padre, é um sinal da magnitude do amor que encontramos no centro da história da salvação: Deus “que se entrega a si próprio pela pobre criatura que é o homem (...). A fartura de Caná é, pois, um sinal de que começou a festa de Deus com a humanidade, a sua auto-oblação pelos homens”[9]. Desta forma, o episódio – um banquete de bodas – converte-se por sua vez em sinal “de um outro banquete, o das núpcias do Cordeiro, que dá seu Corpo e Sangue a pedido da Igreja, sua Esposa”[10].

A intercessão da Virgem Maria

A entrega do Senhor pelos homens tem a sua hora, que em Caná ainda não tinha chegado. Contudo, Jesus antecipa-a graças à intercessão da Santíssima Virgem: “Maria põe-se entre o seu Filho e os homens na realidade das suas privações, das suas indigências e dos seus sofrimentos. Põe-se de ‘permeio’, isto é, faz de mediadora, não como uma estranha, mas na sua posição de mãe, consciente de que como tal pode – ou antes, ‘tem o direito de’ – fazer presente ao Filho as necessidades dos homens”[11].

Com razão, muitos autores viram um paralelismo entre o milagre de Caná, onde Nossa Senhora se ocupa com solicitude maternal daqueles que estão ao seu lado, e o momento do Calvário, onde São João a recebe como mãe de todos os homens. Apoiado nesta realidade, São Josemaria chamava-lhe frequentemente Mãe de Deus e nossa Mãe, e aconselhava a tratá-la como filhos. “Maria quer sem dúvida que a invoquemos, que nos aproximemos dEla com confiança, que recorramos à sua maternidade, pedindo-lhe que se manifeste como nossa Mãe. Mas é uma mãe que não se faz rogar, que até se antecipa às nossas súplicas, porque conhece as nossas necessidades e vem prontamente em nosso auxílio, demonstrando com obras que se lembra constantemente de seus filhos”[12].

E, ao mesmo tempo, outro elemento essencial da sua maternidade manifesta-se nas palavras que dirige aos criados: “fazei o que Ele vos disser” (Jo 2, 5). “Nossa Senhora, sem deixar de se comportar como Mãe, sabe colocar os seus filhos em face de suas precisas responsabilidades. Aos que dEla se aproximam e contemplam a sua vida, Maria faz sempre o imenso favor de os levar até à cruz, de os colocar bem diante do exemplo do Filho de Deus. E nesse confronto em que se decide a vida cristã, Maria intercede para que a nossa conduta culmine com uma reconciliação do irmão menor - tu e eu - com o Filho primogênito do Pai.

Muitas conversões, muitas decisões de entrega ao serviço de Deus foram precedidas de um encontro com Maria. Nossa Senhora fomentou os desejos de procura, ativou maternalmente as inquietações da alma, fez ansiar por uma mudança, por uma vida nova. E, assim, aquele fazei o que Ele vos disser converteu-se em realidades de amorosa entrega, em vocação cristã que ilumina desde então toda a nossa vida”[13].

Essa ideia estava contida na oração do Bem-Aventurado Álvaro, quando ele foi rezar no Santuário das Bodas de Caná, em 17 de março de 1994: “Quando saiu”, contava Mons. Javier Echevarría, “comentou qual tinha sido a sua petição ao Senhor: que nós também seguíssemos o conselho da Virgem Maria: fazei o que Ele vos disser, façamos o que Ele nos pedir em todos os momentos”[14].


[1] São Josemaria, Artigo “A Virgem do Pilar”.

[2] São Jerônimo, Epístola XLVI. Paulae et Eustochiae ad Marcellam, 13.

[3] São Jerônimo, Epístola CVIII. Epitaphium Sanctae Paulae, 13.

[4] Itinerarium Antonini Piacentini, 4.

[5] São Josemaria, Caminho, n. 499.

[6] Ibíd., n. 509.

[7] Ibid., n. 507.

[8] Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré. Desde o Batismo à Transfiguração, pág. 217-218.

[9] Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré. Desde o Batismo à Transfiguração, pág. 219.

[10] Catecismo da Igreja Católica, n. 2618.

[11] João Paulo II, Encíclica Redemptoris Mater, 25-III-1987, nº 21.

[12] É Cristo que passa, n. 141

[13] É Cristo que passa, n. 149

[14] Javier Echevarría, Palavras citadas em Crónica, 1994, p. 309 (AGP, biblioteca, P01).

Fonte: opusdei.org